A judicialização da política é a redenção?

Estátua da Justiça
Arco-íris ao entardecer visto da Estátua da Justiça. Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF (06/10/2011)

No século XVIII, Charles de Montesquieu consagrou a ideia de que os estados não absolutistas deveriam ser estruturados em três poderes: Legislativo, Executivo (do direito das gentes) e Executivo (do direito civil). Ao Poder Legislativo caberiam as atribuições de legislar e fiscalizar; ao Executivo do direito das gentes (Executivo) competiria principalmente a função de administrar a coisa pública; ao Executivo do direito civil (Judiciário), por sua vez, incumbiria julgar os criminosos e os conflitos que a ele fossem apresentados. O cerne da teoria tripartite difundida por Montesquieu é a consideração de que cada um dos poderes, ao exercer suas atribuições, serve de freio e contrapeso (check and balance) aos demais. Dessa forma, estabelece-se um quadro em que o poder é contido pelo próprio poder, o que se presta tanto a impedir a autonomia absoluta de algum dos poderes quanto a garantir a harmonia no exercício das funções de cada um deles.

Apesar desse modelo clássico, nem sempre os arranjos institucionais entre os poderes funcionaram de forma harmônica. Durante o século XX, a América Latina sofreu com ditaduras que, se por um lado promoveram a inflação do Executivo, por outro tentaram converter o Judiciário em um mero braço burocrático controlado pelos políticos. Os tribunais, aqui, teriam de ser mantidos sob controle para não exercerem uma de suas principais funções: a contenção do poder. No entanto, a partir da década de 1980, o continente experimentou um novo padrão de intervencionismo judiciário, com o abandono do low profile e a autocompreensão do Judiciário como poder político, colocando-se em colisão com os demais poderes do Estado.

Essa proeminência do Judiciário se manifestou sobretudo através da judicialização dos conflitos, inclusive os políticos. A judicialização é o processo de transferência do poder de decisão das instâncias políticas tradicionais para o Judiciário, atribuindo-se aos juízes a palavra final sobre as mais importantes questões econômicas, políticas, sociais e morais da sociedade.

 Foi após a Segunda Guerra Mundial que esse fenômeno ganhou corpo em todo o mundo, e isso pode estar relacionado a alguns fatores principais. O primeiro deles é o reconhecimento do Judiciário como uma instituição importante para garantir o processo democrático, os direitos fundamentais e o enfrentamento a governos totalitários. Ao lado disso, tem-se a incompetência do Poder Legislativo para produzir consensos na sociedade, seja porque simplesmente não tem conseguido fazê-lo, seja porque abdicou desse papel mediante a ‘terceirização’ do poder decisório para os juízes.

Para Boaventura de Sousa Santos, o novo protagonismo dos tribunais está diretamente ligado ao desmantelamento dos modelos de Estado intervencionista – o Estado desenvolvimentista dos países periféricos ou o Estado de bem-estar europeu -, pois grande parte das demandas que são apresentadas ao Judiciário busca a concretização das promessas do Estado social: são ações de direito trabalhista, previdenciário, de tutela da saúde, da educação, da moradia etc. Tanto é assim que países como Suécia (exemplo de sucesso do Estado de bem-estar europeu) e Holanda registram baixíssimas taxas de litigância judicial. Analisando esses exemplos, Boaventura conclui que “a ligação tem a ver com culturas jurídicas e políticas, mas também com o nível de efetividade na aplicação dos direitos e com a existência de estruturas administrativas que sustentem essa aplicação”.

No Brasil, a judicialização assume contornos ainda mais fortes porque, desde 1988, temos uma constituição abrangente, que regulamenta assuntos que vão desde a estrutura do Estado e a separação dos poderes até os direitos dos índios, a ordem econômica, o funcionalismo público. A partir do momento em que a Constituição normatiza uma determinada área da vida social, ela fornece o substrato necessário à judicialização desse campo, pois o que antes traduzia um apelo à moralidade, à ética ou ao respeito (às minorias étnicas e raciais, aos gays, às mulheres etc.) então passa a constituir um direito, uma exigência que se pode apresentar aos tribunais. Aqui, assim como em várias outras sociedades periféricas e semiperiféricas, em uma única constituição foram reconhecidos catálogos de direitos que, nos países centrais, resultaram de lutas travadas em um longo processo histórico.

Outra peculiaridade brasileira que estimula a judicialização é a dupla via de controle de constitucionalidade das leis. No Brasil, a análise da compatibilidade entre uma lei e a Constituição pode ser feita tanto pelo STF, mediante a provocação direta por certas entidades públicas ou privadas, quanto por qualquer outro juiz ou tribunal, no âmbito dos processos (ainda que simples, a exemplo das causas previdenciárias e trabalhistas) que eles tenham que julgar. A ampla possibilidade de exercício do controle de constitucionalidade, aliada à diversidade dos temas abordados na Constituição, tem feito com que a palavra final em quase todas as questões relevantes que o país tem discutido nos últimos anos tenha ficado a cargo do Judiciário.

Quando o tema é a interferência no processo político, além da própria existência de uma Justiça Eleitoral, os exemplos de decisões judiciais são abundantes.  Limitando-se apenas a decisões mais recentes, é de se lembrar da cláusula de barreira para criação de novos partidos, da definição do número de vereadores dos municípios e, na última semana, da proibição do financiamento empresarial das campanhas eleitorais.

Mas não é só nessas decisões mais proximamente ligadas às estruturas majoritárias que o Judiciário tem se superposto aos demais poderes. O protagonismo judicial também tem ocorrido frente às próprias funções típicas do Legislativo e Executivo. No primeiro caso, são elucidativas da inércia (ou recusa) parlamentar em legislar acos decisões do STF sobre a greve no serviço público, as uniões homoafetivas, o aborto de anencéfalos e a legalização das drogas. Já o vácuo do Poder Executivo tem sido preenchido pelos juízes nas já corriqueiras decisões que determinam o fornecimento de medicamentos ou tratamentos de saúde, ou, em outra escala, em importantes julgamentos como o que considerou inconstitucional a situação do sistema penitenciário nacional, condenando o Executivo a uma série de medidas para tratar o problema.

Com a judicialização, o sistema de justiça colmata as falhas do sistema político, e o Judiciário passa a ser considerado o locus da redenção de uma sociedade. Não é preciso muito esforço de memória para lembrar que, há dois dias, o julgamento do STF determinando que saíssem da jurisdição de Sérgio Moro alguns casos de corrupção no setor público gerou um alvoroço generalizado entre os que acreditam que algum heroi togado poderá nos redimir ao “limpar toda a sujeira que está aí”. Episódios como esse apontam para algo mais grave, que é a despolitização do debate político, com o Judiciário pautando os assuntos políticos da ordem do dia. Na verdade, páginas e páginas de jornais, horas e horas de programas televisivos têm sido destinadas à cobertura burocrática de processos em que apurados crimes cometidos por membros da classe política.

Com isso, o Judiciário, que deveria operar segundo a lógica lícito/ilícito, politiza-se, e passa a funcionar de forma subordinada aos binômios poder/não poder, notícia/não notícia. Valendo-se do modelo teórico proposto por Luhmann, pode-se dizer que na judicialização da política a lógica binária do subsistema político prepondera sobre o binômio próprio do subsistema jurídico, promovendo uma verdadeira corrupção sistêmica.

A proeminência judiciária tem contribuído para que os sujeitos sejam tomados por uma completa apatia política, relegando a condição de atores políticos e a participação no processo que culminará na elaboração de normas e valores públicos que interessam a toda a comunidade. A judicialização, portanto, pode ser considerada como mais um sintoma da erosão da esfera pública, fazendo com que cada vez menos pessoas assumam as responsabilidades inerentes à vida democrática e à participação nos processos de escolha, cobrança e fiscalização dos representantes políticos.

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diana-andrade

Diana é defensora pública e mestre em desenvolvimento regional. Escrever no Pandora Livre é parte do seu plano de se tornar uma burocrata descolada.

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